Água potável: a insustentável situação do saneamento no Brasil
Água potável : a insustentável situação do saneamento no Brasil. Entrevista especial com Iene Christie Figueiredo
Por João Vitor Santos . Edição: Ricardo Machado . IHU
A cidade do Rio de Janeiro ocupou as manchetes de jornais em todo o Brasil e no mundo nas primeiras semanas de 2020, mas não foi por conta de suas belas paisagens litorâneas, senão pela qualidade da água disponibilizada às pessoas. O problema histórico nas regiões periféricas de todo o Brasil chegou à classe média carioca e ganhou status de calamidade. Essa é só a ponta do iceberg do descaso do saneamento básico no país. “Todos os afluentes ao rio Guandu se encontram em estado avançado de degradação da sua qualidade, uma vez que cortam regiões/municípios com crescente adensamento populacional e sem qualquer serviço de esgotamento sanitário prestado de forma efetiva. Ou seja, todo esgoto doméstico gerado nessa região vai para os cursos d’água sem qualquer tipo de tratamento”, explica a professora doutora Iene Christie Figueiredo, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
O descalabro do fornecimento de água suja e contaminada é resultado da negligência dos poderes públicos, tanto em fiscalizar e cobrar o cumprimento da lei, quanto da falta de investimentos suficientes na gestão dos recursos hídricos. “A real aplicação dos requisitos legais, e a adequada fiscalização/regulação dos serviços de Saneamento são fundamentais para a segurança hídrica. Apenas 46,3% dos esgotos gerados no Brasil em 2018 foram conduzidos ao tratamento (não podemos afirmar que o tratamento foi adequado/suficiente para atender aos padrões de lançamento). Considerando que a Política Nacional de Saneamento é de 2007, fica claro nosso descaso com a problemática com a devida prestação destes serviços”, pondera a entrevistada.
O atual contexto de crise climática sugere que atualizemos nossa compreensão sobre o que compreendemos como colapso, o que não é um destino para o qual caminhamos, senão uma realidade fática em muitos contextos. “Cada região terá sua condição atual e capacidade de reversão diferentes. Mas acho que já nos encontramos em colapso, mesmo que de forma esporádica, em muitas regiões”, complementa.
Iene Christie Figueiredo possui graduação em Engenharia Civil e mestrado em Engenharia Ambiental pela Universidade Federal do Espírito Santo, doutorado em Engenharia Civil – Tecnologia de Saneamento Ambiental pelo Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia / Universidade Federal do Rio de Janeiro – COPPE/UFRJ. É professora Adjunta da Escola Politécnica/UFRJ, vinculada também aos mestrados Profissionais em Engenharia Ambiental e Engenharia Urbana desta instituição. Tem experiência na área de Engenharia Ambiental e Sanitária, atuando principalmente nos seguintes temas: processos de tratamento de água e de esgoto, poluição e qualidade das águas.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que esse episódio do início de 2020, envolvendo a qualidade da água ofertada para consumo no Rio de Janeiro, revela sobre a segurança hídrica da cidade e de toda região?
Iene Christie Figueiredo – Neste momento estamos questionando a segurança hídrica em relação a qualidade. Uma a discussão sobre a quantidade precisa considerar também o fato da Região Metropolitana do Rio de Janeiro – RMRJ ser quase integralmente dependente do Rio Guandu (cerca de 80% da demanda de água potável produzida nessa região depende do Guandu que, por sua vez depende da transposição do rio Paraíba do Sul, importante manancial também para Minas e São Paulo).
Voltando à questão da qualidade (objeto da questão atual), todos os afluentes ao rio Guandu (com destaque àqueles que estão próximos da captação da Estação de Tratamento de Água Guandu) se encontram em estado avançado de degradação da sua qualidade, uma vez que cortam regiões/municípios com crescente adensamento populacional e sem qualquer serviço de esgotamento sanitário prestado de forma efetiva. Ou seja, todo esgoto doméstico gerado nessa região vai para os cursos d’água sem qualquer tipo de tratamento.
Voltando à questão da qualidade (objeto da questão atual), todos os afluentes ao rio Guandu se encontram em estado avançado de degradação da sua qualidade – Iene Christie Figueiredo
IHU On-Line – Que relações podemos estabelecer entre esse caso do Rio de Janeiro com a segurança hídrica das grandes metrópoles brasileiras?
Iene Christie Figueiredo – A situação do Rio é similar a tantas outras regiões metropolitanas que se encontram instaladas nos trechos finais dos seus mananciais abastecedores: uma histórica deficiência na prestação dos serviços de saneamento, com a contaminação cotidiana desses corpos d’água por esgotos, drenagem e resíduos sólidos. Estes contaminantes são arrastados sem o adequado tratamento para as captações dos sistemas de abastecimento de água e, dependo da capacidade de diluição do rio, requer readequação do processo de potabilização para garantir a produção de água de qualidade.
IHU On-Line – Em que medida a segurança hídrica é ameaçada no Rio de Janeiro por ineficiência de sistema de governança de recursos hídricos? Como superar essa ineficiência?
Iene Christie Figueiredo – Prestar os serviços de saneamento é uma obrigação constitucional do município, que pode prestá-lo de forma direta ou indireta, ou concedê-lo para empresas públicas ou privadas. Os municípios têm se mostrado omissos, seja na prestação dos serviços ou na fiscalização da concessão. A forma real de mudar este cenário é aplicar a lei, principalmente aquela que trata do Saneamento Básico (lei 11445/2007).
A real aplicação dos requisitos legais, e a adequada fiscalização dos serviços de Saneamento são fundamentais para a segurança hídrica – Iene Christie Figueiredo
IHU On-Line – No que consiste um eficiente sistema de governança de recursos hídricos, tanto do ponto de vista do tratamento de água para consumo como para preservação ambiental?
Iene Christie Figueiredo – Como disse, tanto a qualidade da água potável (água para consumo humano) como a prestação dos serviços de Saneamento (abastecimento de água, esgotamento sanitário, drenagem urbana e manejo dos resíduos sólidos) já são regulados por leis específicas. Nelas são definidos não só critérios de qualidade, mas também direitos e deveres da prestação e fiscalização dos serviços. A real aplicação dos requisitos legais, e a adequada fiscalização/regulação dos serviços de Saneamento são fundamentais para a segurança hídrica.
Além disso, precisamos fazer a mesma observação quando falamos das leis que regem os recursos hídricos: é importante cumprir padrões de lançamento, gestão da bacia com a efetiva participação dos comitês de bacia, etc.
IHU On-Line – Em nota conjunta, docentes da UFRJ indicam que “todas as medidas apontadas como necessárias para garantir a segurança hídrica da população da Região Metropolitana do Rio de Janeiro não implicam em desenvolvimento de novas tecnologias e já são bastante conhecidas”. Que tecnologias são essas e quais seus limites?
Iene Christie Figueiredo – As tecnologias são diversas, considerando não só os processos de potabilização (e os diferentes produtos que podem ser associados aos processos convencionais) mas também em relação ao tratamento de efluentes domésticos (a comunidade científica brasileira disponibiliza um leque imenso de possibilidades de tratamento adequadas às nossas condições climáticas, sociais e econômicas). O importante aqui não é elencar tecnologias (essa discussão é profundamente técnica, densa e longa), mas sim dizer que o já fazemos (ou sabemos fazer) e suficiente para dar solução a esta situação. No entanto, qualquer solução depende de vontade política associada ao investimento, e tempo para que os resultados aconteçam.
Uma histórica deficiência na prestação dos serviços de saneamento, com a contaminação cotidiana desses corpos d’água por esgotos, drenagem e resíduos sólidos – Iene Christie Figueiredo
IHU On-Line – O episódio do Rio de Janeiro também trouxe à tona a informação de que a Estação de Tratamento de Água de Guandu recebe praticamente esgoto e tem de transformar em água potável. Como avalia esse cenário? Essa também é a realidade de outras estações de tratamento de água de outras metrópoles brasileiras?
Iene Christie Figueiredo – Além do que já foi dito anteriormente, deve-se destacar aqui que a ETA Guandu começou a operar nos anos 1950 entregando água de qualidade para a população. Situações como esta, observadas em outras regiões do país, são decorrentes da contaminação da água bruta associada a elevada radiação e longos períodos de estiagem. Ou seja, a presença de esgotos/nutrientes é a principal razão da ocorrência de algas e/ou cianobactérias (sua remoção é, portanto, fundamental para controle destes eventos), mas é necessário que outros fatores sejam associados a esta contaminação que o abastecimento seja comprometido.
Ponto de captação de águas na ETA do Rio Guandu na Baixada Fluminense, no Rio, e a poluição da água
(Foto: Divulgação | Comitê Guandu)
(Foto: Divulgação | Comitê Guandu)
IHU On-Line – Qual a situação do tratamento de esgotos no Brasil de 2020?
Iene Christie Figueiredo – Ainda não apresentamos resultados positivos neste sentido. Segundo a última publicação do Sistema Nacional de Informação em Saneamento – SNIS, 2019, apenas 46,3% dos esgotos gerados no Brasil em 2018 foram conduzidos ao tratamento (não podemos afirmar que o tratamento foi adequado/suficiente para atender aos padrões de lançamento). Considerando que a Política Nacional de Saneamento é de 2007, fica claro nosso descaso com a problemática com a devida prestação destes serviços.
Apenas 46,3% dos esgotos gerados no Brasil em 2018 foram conduzidos ao tratamento – Iene Christie Figueiredo
IHU On-Line – Técnicos apontam que, atualmente, o esgoto doméstico traz também uma carga elevada de pesticidas, protetor solar, repelentes, remédios como antibióticos, hormônios, antidepressivos e vários outros fármacos. Quais os desafios para se tratar a matriz do esgoto atualmente? A maioria das estações em operação no Brasil hoje dão conta de tratar esses resíduos?
Iene Christie Figueiredo – Essa problemática é real, mas num país em que não temos investimentos suficientes para tratar/remover o mínimo (matéria orgânica e nutrientes), falar disso agora é utópico. Os problemas no abastecimento como o que vivemos agora são decorrentes da presença destes contaminantes básicos (matéria orgânica e nutrientes). Creio que devemos resolver problemas básicos para então partir para uma nova demanda ambiental.
Neste ponto não estou desprezando ou minimizando o problema da presença destes contaminantes emergentes nos esgotos (isso é real), mas sim priorizando ações básicas em detrimento das mais complexas. Isso dá muita discussão dependendo da forma que colocamos.
IHU On-Line – No atual contexto brasileiro, como assegurar água de qualidade e em quantidade suficiente para consumo humano nas grandes cidades? Que ações são necessárias, tanto do ponto de vista do Estado como da sociedade em geral?
Iene Christie Figueiredo – Reforço o já dito: aplicação real e responsável das leis e das políticas públicas já existentes. O estado por um lado, a participação popular por outro, precisam se comprometer com este sério problema. Enquanto Saneamento Básico e Gestão dos Recursos Hídricos não assumirem sua importância para a vida da sociedade, estaremos mais distantes da ‘água de qualidade e em quantidade’.
Cada região terá sua condição atual e capacidade de reversão diferentes. Mas acho que já nos encontramos em colapso, mesmo que de forma esporádica, em muitas regiões – Iene Christie Figueiredo
IHU On-Line – Se o atual cenário não for alterado, em quanto tempo o Brasil entrará em colapso no que diz respeito à segurança hídrica?
Iene Christie Figueiredo – É difícil ser determinístico nisso. Cada região terá sua condição atual e capacidade de reversão diferentes. Mas acho que já nos encontramos em colapso, mesmo que de forma esporádica, em muitas regiões – e este pode ser o caso da RMRJ. Cada vez mais teremos relatos destes eventos no país, graças a herança de descaso com nossos recursos hídricos.
(EcoDebate, 06/02/2020) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.