Conjuntura da Semana. Sociedade brasileira mergulha numa crescente anomia?
A análise da Conjuntura da Semana é uma (re)leitura das Notícias do Dia publicadas diariamente no sítio do IHU. A análise é elaborada, em fina sintonia com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT e por Cesar Sanson, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN.
Sinais de anomia na sociedade brasileira
O Brasil vive um momento perturbador. Cenas de barbárie são gotejadas no noticiário e se repetem com frequência cada vez maior. Em menos de três meses o país se viu diante de um embrutecimento assustador. 2014 começa marcado pela bestialidade.
Primeiro, a notícia das mais de 60 mortes no Complexo Penitenciário de Pedrinhas no Maranhão, logo depois a imagem de um jovem negro, de apenas 15 anos, pelado, espancado e esfaqueado na orelha, amarrado a um poste pelo pescoço com uma trava de bicicleta no Rio de Janeiro.
Nos últimos dias mais cenas de selvageria. Um morador de rua foi agredido por um grupo de pessoas após furtar um frasco de xampu num supermercado na zona leste de Sorocaba. O homem foi arrastado para a rua e agredido a socos, chutes e pauladas. Um agressor chegou a quebrar uma garrafa na cabeça da vítima. Também nesses dias, um torcedor do Santos foi morto com chutes, socos e pauladas por torcedores de um time rival.
No mesmo dia, uma moradora de rua foi encontrada morta com corpo carbonizado numa região nobre Teresina-PI. Também na capital piauiense, um suspeito de assalto foi amarrado e jogado em um formigueiro no bairro Dirceu Arcoverde, no sudeste da cidade. O acontecimento chocou a população e chegou a ser destaque na mídia nacional e internacional.
A insanidade e ferocidade não cessam
Ao deparar-se com blocos de Carnaval interrompendo o trânsito, na Vila Madalena, bairro de classe média de São Paulo, um homem acelerou o carro e feriu dez pessoas. Quem estava perto o arrancou do veículo e passou a agredi-lo. Quando ele conseguiu fugir, destruíram o carro. Um casal de lésbicas foi espancado ao sair de um bloco de Carnaval, no Rio. Uma delas teve a roupa arrancada. Em Franca, no interior de São Paulo, um adolescente correu atrás de um suspeito de assalto e lhe aplicou um golpe chamado de “mata-leão” (estrangulamento). O suspeito, de 22 anos, teve um infarto após ser imobilizado e morreu no hospital. Os casos são relatados por Eliane Brum.
Casos como esses se repetem diariamente, nem todos ganham destaque na mídia. Chama a atenção a reincidência de casos em que suspeitos por furtos são amarrados em postes e são surrados. Prática que remonta a época do pelourinho do Brasil escravocrata.
A violência gratuita e fortuita irrompe na sociedade brasileira e de forma transversal atravessa todos os segmentos. “À espera do ônibus ou dentro do carro, branco, negro, pobre, rico: o Brasil se embrutece. E o Brasil nem sequer se nota”, afirma Janio de Freitas.
“Nunca se matou tanto, nunca se excluiu tanto, nunca foi tão grande a intolerância contra minorias, etnias e crenças religiosas. Hoje vivemos em cidades do medo, nas quais estar seguro é estar em casa”, diz Yvonne Bezerra de Mello que acudiu o jovem negro atado ao poste no Rio de Janeiro. Segundo ela, “aceitamos e aplaudimos jovens torturados em plena rua, aceitamos e aplaudimos execuções sumárias e demonizamos aqueles que tentam, de uma forma ou de outra, mudar esse quadro”.
O justiçamento passou a ser aceito e justificado. Emblemático a defesa veemente da jornalista do SBT Rachel Sheherazade, em horário nobre, elogiando a atitude do grupo que espancou e amarrou o jovem negro pelo pescoço no poste.
Ainda mais grave. O justiçamento tem cor e condição social preferencial. Atinge, sobretudo, os pobres e negros. A antropóloga Alba Zaluar afirma que a tese do bandido bom é bandido morto, tem endereço: “O que chamam de bandido? O pobre, negro, favelado”.
Ninguém se perguntou sobre a história do menino preso ao poste por ‘justiceiros’. Uma história carregada de tragédias da infância. O estereótipo de menino de rua e negro o condenou.
As pessoas que amarraram o jovem negro no Rio de Janeiro não apareceram do nada, diz Vladimir Safatle Segundo ele, “seus pais já apoiavam, com lágrimas de felicidade nos olhos, os assassinatos perpetrados pelo esquadrão da morte. Seus avós louvaram as virtudes do golpe militar de 1964, que colocaria de vez a ordem no lugar da baderna. Seus bisavós gostavam de ver a polícia da República Velha atirando contra grevistas com aquele horrível sotaque italiano. Seus tataravós costumavam ver cenas de negros amarrados a postes com um certo prazer incontido. Afinal, já se dizia à época, alguém tinha que pôr ordem em um país tão violento”.
A violência, intolerância, preconceito e xenofobia impressionam. São oriundos de estratos supostamente formadores de opinião e ‘esclarecidos’. Um deputado gaúcho diz que quilombolas, índios e homossexuais são “tudo o que não presta” e incita a violência. Professora universitária zomba de passageiro em aeroporto por sua aparente condição social.
Anomia institucionalizada
A violência, porém, não grassa apenas nos espaços domésticos e públicos. Ela também é institucionalizada. Recentemente, no dia 22 de fevereiro, estudantes de São Paulo num ato contra a Copa do Mundo apanharam muito da polícia. A PM paulista numa operação que ficou conhecida como ‘Tropa do Braço’ desceu o cassetete sem dó nem piedade nos estudantes. Violência gratuita segundo relato de um professor e de um estudante.
A ação policial, aliás, é um capítulo a parte na espiral da violência, sobretudo, contra os mais pobres. O caso Amarildo é a ponta do iceberg de uma pratica adotada muito mais como padrão do que exceção.
Ficou evidenciado, por pressão da sociedade, que o pedreiro foi torturado dentro da própria sede da UPP. As “técnicas” utilizadas envolviam asfixia com saco plástico na cabeça, choque elétrico na planta dos pés molhados e afogamentos na privada. Esses “métodos” são usados corriqueiramente contra “suspeitos” pelo Batalhão de Operações Especiais (Bope).
A resistência dos policiais acusados em dizer onde está o corpo de Amarildo também chamou a atenção de especialistas em violência para um fenômeno cada vez mais nítido no Rio de Janeiro: o crescimento no número de desaparecimentos, que alguns relacionam com outro índice alterado, este, em queda: o registro de mortes provocadas por policiais.
O número de desaparecidos apenas no Rio de Janeiro é absurdo. Segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP) 6.034 desaparecimentos foram contabilizados entre novembro de 2012 e outubro de 2013. Desde o primeiro ano do governo Sérgio Cabral, as estatísticas do ISP (vinculado à Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro) apontam quase 40 mil desaparecidos. A grande e maioria deles, não divulgados e esclarecidos, resultantes da ação policial.
Quando se percebe que o agente institucional responsável pela promoção da segurança, propaga o terror ao arrepio de procedimentos aceitáveis, percebe-se o tamanho do problema.
Na opinião do sociólogo José de Souza Martins estamos diante de um perigoso vazio. Segundo ele, “a sociedade brasileira está mergulhada num cenário de crescente anomia, de corrosão das normas tradicionais de comportamento sem que novas e eficazes normas surjam para preencher o perigoso vazio".
Razões sociológicas e filosóficas da anomia
As razões da crescente anomia na sociedade brasileira são complexas.
A anomia é um conceito abordado por Durkheim. Na obra durkheimiana, a anomia é manifestação de desregramento que torna precária a vida em comum, corta laços sociais e empurra a sociedade para o imprevisível.
Durkheim preocupa-se com a “coesão social”, ou seja, a necessidade da feitura de um pacto que se manifeste em regras comuns para o convívio social. A coesão social ou a sua ausência é resultado da tensão entre dois conceitos: o da solidariedade e o da anomia. A solidariedade interna da sociedade, solidariedade qualificada por ele como “orgânica” em contraponto à “mecânica”, funda-se, sobretudo, numa ordem social que leve justiça a todos os seus membros.
Durkheim considera aceitável manifestações de anomia, que classificará como patologias, desde que não excedam determinados limites e ameacem a vida em comum na sociedade. Certamente Durkheim jamais aceitaria a tese da ‘justiça pelas próprias mãos’. Pelo contrário, é defensor da ‘nomia’ - sufixo nominal de origem grega que exprime normas, regras e leis – sustentadas pelo Estado.
Pois é disso que se trata. A sociedade brasileira dá sinais de anomia. Momentos nos quais a ‘patologia’ – no caso reincidentes manifestações de barbárie – se apresentam acima do normal e, pior, são considerados e assimilados como normais, justificáveis e até tidas como necessárias.
As razões de fundo da anomia brasileira talvez se expliquem melhor pela filosofia do que pela sociologia. Estão relacionadas a determinado tipo de modernidade que empurra-nos, paradoxalmente, para a obscuridade.
Estaríamos, na sofisticada elaboração do filósofo Henrique de Lima Vaz, diante de uma crise das intenções, atitudes e padrões de conduta que tornaram possível historicamente nosso "ser em comum” e, portanto, “das razões que asseguraram a viabilidade das sociedades humanas e o próprio predicado da socialidade tal como tem sido vivida nesses pelo menos cinco milênios de história”.
As “razões do nosso viver em comum” se estilhaçaram e com ela a sociedade perdeu seu corrimão. Na opinião do filósofo Vaz, aqui se instaura o paradoxo da modernidade que a torna um enigma. O enigma da modernidade consiste no fato de sermos "uma civilização tão prodigiosamente avançada na sua razão técnica e tão dramaticamente indigente na sua razão ética".As razões, portanto, de fundo da anomia são de ordem ética. De crise dos fundamentos que até então nos permitiam e permitem viver em sociedade, mesmo que conflituosa.
A política fracassou
Há, porém, razões mais visíveis dos riscos da instauração da anomia na sociedade brasileira e elas estão no campo da política, ou na ausência dessa em mediar o viver em comum. Os protestos de junho de 2013, aliás, são demonstração da ‘patologia’ que se instaurou no mundo da política, lento e incapaz de subordinar os interesses do mercado aos interesses públicos. O caso do transporte coletivo é apenas a ponta do iceberg.
O Brasil, lembrando Caio Prado Junior, nasce como uma empresa. Nossa dinâmica foi dada de fora para dentro. É o mercado que dá sentido ao Brasil. Mesmo o ciclo do campo da esquerda no poder vem se demonstrando incapaz de interromper essa dinâmica.
A anomia também é manifestação do fracasso da política. Do sentimento do “não me representa”.
A violência atual no cenário brasileiro é "um profundo sintoma social da vida política nacional contemporânea", constata Vladimir Safatle Segundo ele, "a política brasileira tem se transformado na arte do silêncio. Arte de passar em silêncio sobre democracia direta, como pagar dignamente professores, como implementar uma consciência ecológica radical, como quebrar a oligopolização da economia, como taxar mais os ricos e dar mais serviços aos pobres. Mas também a arte de tentar silenciar descontentes".
Na opinião de Safatle, “já há algum tempo, a política brasileira tem expulsado muita coisa de seu interior. Tendendo, cada vez mais, a se limitar a discussões gerenciais sobre modelos relativamente consensuais de gestão socioeconômica (vide o debate recente sobre o dito "tripé econômico", do qual ninguém parece discordar), ela perde a possibilidade de mobilizar populações por meio de alternativas não testadas e que ainda contenham um forte potencial criativo. Assim, ela perde também a capacidade de acolher demandas que, mesmo sendo urgentes, sempre colidem com boas justificativas tecnicistas para serem deixadas para mais tarde”.
Nesse contexto de mutismo, diz o filósofo, “a violência aparece como a primeira revolta contra a impotência política. A história está cheia de exemplos nos quais as populações preferem a violência genérica à impotência. Ainda mais quando se confrontam com uma brutalidade policial como a nossa”.
O fracasso da esquerda
O fracasso da política visto nas manifestações, no crescimento de movimentos “não movimentos” – tipo Black Bloc - é também o fracasso do PT. “O ocaso do PT como opção transformadora foi entendido pela sociedade como o ocaso da ‘última esperança’. Agora, todos seriam iguais”, comenta Gustavo Gindre integrante do Coletivo Intervozes.
O PT, mesmo e apesar de consideráveis avanços, foi incapaz de romper com determinado modelo de desenvolvimento refém da centralidade do mercado. "Precisamos mudar a direção de um desenvolvimento que transforma as nossas cidades em espaço para carros mais do que para a cidadania. Precisamos voltar a comer comida boa e gostosa e não os venenos do agronegócio. Mas, como fazer isto com as alianças que se costuram para ganhar e manter o poder a todo custo?”, pergunta Cândido Grzybowski.
Na opinião do filosofo Renato Janine Ribeiro estamos no limite do que pode ser a inclusão social pelo consumo”. Segundo ele, “beira o ridículo negar a inclusão social promovida pelo PT. Foi substancial. Mas se deu pelo que nossa sociedade consumista mais valoriza. Melhorar radicalmente as escolas teria exigido mais verbas e protagonismo do poder público. O mesmo vale para a saúde, o transporte e a segurança públicos". Para Janine Ribeiro, "com o consumo, o PT escolheu a via do possível. Dificilmente seus adversários teriam feito melhor. Mas a trilha do consumo significa: a ideologia que ganhou foi a do shopping center".
Não se trata de culpabilizar e responsabilizar o PT pelas manifestações de anomia na sociedade brasileira. Como já vimos, suas razões são complexas. O PT, porém, acaba “dando” a sua parcela de contribuição mais do que pelo deixou de fazer do que fez.
Nesse momento é preocupante que o governo petista “patrocine” saídas autoritárias – legislação repressora como a lei antiterrorista - para abafar aqueles que protestam. A ausência da política institucional vem sendo respondida pela política das ruas. Calar as ruas é calar a política que empurra para mudanças mais substanciais.
Como destaca Eliane Brum, “os protestos iniciados em junho pelos 20 centavos e agora centrados na Copa do Mundo são um dizer. Responder a eles com repressão – seja da polícia no espaço público, seja em projetos de lei que transformam manifestantes em terroristas, seja anunciando que o Exército vai para as ruas em tempos de democracia – é uma forma brutal de não escutar aqueles que ainda se preocupam em dizer”.
Segundo ela, “é talvez a maior violência de todas. É preciso ser muito surdo para acreditar que prender todos, ‘deter para averiguação’, criminalizar manifestantes é suficiente para voltarmos a ser o Brasil cordial e contente que nunca existiu, 200 milhões em ação torcendo pela seleção canarinha. Que o dizer de quem deseja um Brasil diferente seja hoje expressado no campo simbólico do futebol é mais uma razão para escutá-lo, ao mostrar que estamos diante de novas construções do imaginário”.
Para aquilo que o governo considera anomia – padrões de manifestações que fogem do seu controle – ele propõe ‘tratamento de choque’, ‘criminalização’. Em vez de contenção, o risco é de crescimento da espiral da violência. O pretenso combate da anomia pode se transformar em mais anomia.
O surpreendente, destaca Jean Tible é o “desencontro entre as mobilizações recentes (as jornadas de junho que prosseguem de várias formas e intensidades) e o Partido dos Trabalhadores”. Segundo ele, “algumas posições-ações petistas causam surpresa (apesar de não representarem o PT como um todo): torcida – explícita ou não – pelo fim das manifestações; avaliação que estas acabaram; flerte com as perigosas vias da criminalização das ‘ações violentas’ (de manifestantes, não das polícias)”.
Para ele, “são posturas petistas contra natura, já que o PT nasce e vem desse mesmo lugar, das resistências, ruas, locais de trabalho, bairros, periferias, campo. O PT como criação ‘inédita’, por mesclar democracia e diversidade internas com uma nova forma de ocupar posições institucionais. Um partido-movimento; que vem perdendo fôlego”.
O que está em jogo é mais democracia e não menos democracia.
As crescentes manifestações de anomia na sociedade brasileira, descritas aqui, precisam de mais política. Mais política civilizatória – o social subordinando o mercado; mais investimento no espaço público – as arenas para a Copa são o contrário; mais cuidado com a pessoa, mais saúde, educação, transporte de qualidade – não apenas megainvestimentos em aeroportos, hidrelétricas, ferrovias, portos; mais cuidado com os mais vulneráveis – indígenas, quilombolas, sem terras, periferias; mais políticas emancipatórias e não compensatórias – o bolsa família é bom, mas melhor ainda é redistribuir renda via empregos decentes, via serviços públicos de qualidade alterando a dinâmica concentradora de renda.
Fonte : Instituto Humanitas Unisinos
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